Vinícius A. Fortes de Barros

Insights on International Law by a PhD in Law student at the University of Cambridge and Federal Prosecutor in Brazil

Parte 2: Obrigações de Israel sob a Nova Opinião Consultiva da CIJ

Assim, neste post vamos seguir a mesma ordem decidida pela CIJ.

A. Quais obrigações o Estado de Israel tem na Palestina em relação ao DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO?

No direito internacional humanitário, um dos principais princípios é o da distinção, em que as partes do conflito armado devem diferenciar quem é civil e quem é membro das forças armadas que está engajado diretamente nas hostilidades.

Ligados ao princípio da distinção, estão os princípios da proporcionalidade (ataques devem ser proporcionais à vantagem militar diretamente antecipada/pretendida) e precaução (não se pode mirar/atacar objetos civis ou a população civil).

No contexto da OC, a CIJ reconheceu desde a OC de 2024 que Israel tem controle efetivo da Faixa de Gaza, o que faz com que Israel seja obrigado a aplicar a lei da ocupação (um ramo do direito internacional humanitário).

Na lei da ocupação, Israel tem o dever de “permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida de ajuda humanitária para civis necessitados, sujeita a um direito limitado de controle. Tais ações de socorro devem ser imparciais e conduzidas de forma não discriminatória” (parágrafo 91 da OC).

Além disso, Israel deve concordar com e facilitar a entrega de bens básicos para a população civil (parágrafo 94). Nessa obrigação, há duas outras obrigações:

  1. Uma obrigação positiva de assegurar suprimentos essenciais à população local (parágrafo 132)
  2. Uma obrigação negativa de não impedir que esses bens ou os serviços essenciais sejam entregues à população (mesmo parágrafo).

Neste segundo ponto, é inserido um dos tópicos mais sensíveis da OC: Israel alegava que a UNRWA, em português: Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo, tinha perdido sua neutralidade e imparcialidade, por ter membros ligados ao Hamas. Segundo dados da OC, entre outubro de 2023 a agosto de 2025, 360 membros da UNRWA foram mortos.

Todavia, a CIJ arguiu que:

  1. A UNRWA, enquanto agência da ONU, foi investigada por duas comissões independentes, que concluíram que ela não havia perdido sua imparcialidade ou neutralidade. A UNRWA tem mais de 17.000 funcionários, dentre os quais 19 foram investigados e somente 9 foram exonerados (parágrafo 60);
  2. A avaliação unilateral de um membro da ONU sobre suas agências não é capaz de afastar os privilégios e imunidades das agências da ONU, já que há um mecanismo específico para solução de disputas (§212)

Assim, retomando ao Direito Internacional Humanitário, a CIJ concluiu que Israel não pode interromper o fornecimento de ajuda humanitária, seja esta pela UNRWA seja por outras organizações humanitárias, como a Cruz Vermelha (§133).

Além disso, a CIJ entendeu que:

a. Há uma proibição, seja na 4ª Convenção de Genebra ou no direito costumeiro, de transferência forçada ou deportação da população civil, o que inclui a proibição de criar condições em que a vida seja intolerável no território ocupado (§139);

b. A Cruz Vermelha tem o direito de visitar pessoas detidas, seja por Israel ou pelo Hamas (§142);

c. A fome (starvation) é proibida no direito internacional humanitário (§143).

B. Quais as obrigações em relação aos DIREITOS HUMANOS?

Ainda que ocorra um conflito armado em um país ou território qualquer, tanto o direito internacional humanitário quanto os direitos humanos continuam a ser aplicados (esse é um ponto que alguns estudantes brasileiros não sabem, como se uma guerra fosse suspender todas as obrigações jurídicas ou direitos humanos).

Assim, a CIJ reiterou que Israel tem obrigações no direito internacional humanitário e nos direitos humanos (§146), e que Israel ratificou vários tratados de direitos humanos (§147).

Nesse aspecto, a CIJ decidiu que Israel deve respeitar:

  1. Direito à vida, proibição da tortura ou tratamento cruel, liberdade e segurança, liberdade de movimento, proteção à família, adequadas condições de vida (comida, roupa, moradia), saúde física e mental, direito à educação e direito à não-discriminação (§151);
  2. Proteção dos direitos das mulheres, crianças, pessoas com deficiência e outros grupos vulneráveis (§158)
  3. Aplicação da Convenção dos Direitos das Mulheres para assegurar a mulheres gestantes e lactantes serviços médicos e adequada nutrição (§ 160).

C. Quais as obrigações de Israel enquanto MEMBRO DA ONU?

Israel é membro da ONU desde 11 de maio de 1949, tendo pedido para entrar na organização em 29 de novembro de 1948.

A CIJ entendeu que é aplicável o Artigo 2(2) da Carta da ONU sobre a boa-fé nas relações com seus membros, bem como o Artigo 1 que estabelece que os membros devem cooperar com a ONU (e também um dever de compliance) (§173).

Nesse dever de boa-fé, Israel deve consultar e negociar com a ONU sempre que tiver algum problema com alguma de suas agências, tal como a UNRWA (§178), bem como respeitar os privilégios e imunidades dos funcionários da ONU e da UNRWA enquanto eles estiverem no exercício dessa função (§183).

Esses privilégios e imunidades não cessam em conflitos armados (§186). Se Israel alega que a UNRWA foi usada pelo Hamas ou que a ONU perdeu controle dos locais em que a UNRWA está localizada, cabe à ONU essa avaliação (§196), o que foi rejeitado pela CIJ e por duas comissões independentes, conforme visto acima.

Ademais, a CIJ entendeu que Israel deve liberar a livre movimentação dos membros da UNRWA, não podendo restringir suas funções, já que a UNRWA é a organização principal na entrega de alimentos, educação e serviços de saúde à população de Gaza.

D. Direito à AUTODETERMINAÇÃO DO POVO PALESTINO.

A CIJ deixou para o final a análise do direito à autodeterminação do povo palestino. Além de ser norma jus cogens, esse direito já havia sido declarado na OC da CIJ de 2024.

Nesta OC de 2025, a CIJ reiterou que há uma negativa por parte de Israel no direito à autodeterminação do povo palestino (§218), bem como que Israel não pode legislar nacionalmente para ganhar controle territorial na Palestina. O respeito à autodeterminação envolve Israel não proibir que os serviços básicos cheguem ao povo palestino (§220), já que isso viola a sobrevivência desse povo.

Ao final, a CIJ mencionou:

a concretização do direito do povo palestino à autodeterminação, incluindo seu direito a um Estado independente e soberano, vivendo lado a lado em paz com o Estado de Israel, dentro de fronteiras seguras e reconhecidas para ambos os Estados, conforme previsto nas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, contribuiria para a estabilidade regional e para a segurança de todos os Estados no Oriente Médio (§222).

Demais Pontos interessantes:

  • Nesse parágrafo 222 (o último da OC), a CIJ não menciona “dois Estados”, justamente para evitar entrar nessa celeuma. Todavia, a Juíza chinesa Xue Hanqin, em voto separado, claramente fala em dois estados (são as palavras finais de seu voto);
  • O nosso Juiz brasileiro, Dr Leonardo Brant, concordou com todos os pontos e lançou voto separado para frisar o direito à autodeterminação do povo palestino, e como esse direito é diretamente ligado a outras obrigações, como integridade territorial e direito das crianças. O Juiz Brant claramente criticou a Corte por não ter sido mais direta e extensiva em sua análise do direito à autodeterminação;
  • A CIJ não analisou as consequências legais das violações das obrigações por Israel. Ela deixou isso claro desde o começo. Esta OC foi para a CIJ declarar quais são as obrigações de Israel e o direito à autodeterminação do povo palestino. Adentrar em análise das violações poderia complicar a CIJ, já que se trata de uma opinião consultiva. Esse é a delimitação material da pergunta feita pela Assembleia Geral (§77).
  • A CIJ deixou claro que Israel não provou que a UNRWA foi utilizada pelo Hamas ou que a agência perdeu sua neutralidade. A CIJ também protegeu a Cruz Vermelha ao assegurar os direitos desta de visitar os detentos.

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Sobre

Vinícius Alexandre Fortes de Barros é estudante de PhD em Direito Internacional Humanitário na Universidade de Cambridge. Gates Scholar. Mestre em Direito Internacional pela mesma universidade. Chevening scholar. Procurador da República (Ministério Público Federal)